Em apenas sete dias, tudo mudou…
A semana em que a minha vida mudou, começou marcada pela trasladação do corpo (que a minha mãe me explicou ser a mudança dos restos mortais de um sítio para outro) da Jacinta Marto, a pastorinha. Ouvi no rádio esta notícia, pouco antes de ir dormir, e fui assombrado por muitos pensamentos. Morreu com nove anos. Mais nova do que eu quatro anos.
Hoje teria quarenta e um, mas não tem. Está parada no tempo. Por isso, continua mais nova do que eu, congelada na infância.
Foi difícil adormecer, envolto em muitas inquietações. Se a pastorinha teve morte tão prematura, podia acontecer também comigo.
Mas isto foi só o princípio.
A noite de agitação parecia uma premonição do que estava por vir….
Dia um.
Na manhã do primeiro dia dessa semana acordei com gritos no andar de baixo. O conteúdo das vozes zangadas era impercetível.
Desci as escadas.
O meu pai dizia para a minha mãe:
‘Lá estás tu com as tuas superstições!’
Ela encolhia-se…
‘Volto a dizer: a bruxa da cidade sabe tudo sobre o que se passa aqui na aldeia, porque a velha dos ovos, quando vai vender para a cidade, conta-lhe tudo o que ouviu nessa semana. Todas as coscuvilhices da aldeia que conseguiu apreender, conta-as à bruxa.’
Os argumentos do meu pai eram válidos.
A velha tinha ar de intrometida.
A minha mãe era dada a superstições: há dez anos que não põe os pés na taberna da praça porque correu em tempos um rumor de que o dono tinha sido amaldiçoado, a pedido de uma das ex-mulheres, que traiu. Frequentar a taberna significava de algum modo estar do lado dele, o que poderia levar a que a maldição afetasse também essa pessoa. Pelo menos, era isto que ela pensava.
A minha mãe gasta muito dinheiro em idas à bruxa. Duas idas por mês, para curar ou prevenir maleitas, diz ela. O meu pai gasta muito latim a repreender a minha mãe. Um raspanete ao dia, para livrar a cabeça da rataria, diz ele. Até rima.
Dia dois.
Nesta aldeia toda a gente se conhece, a velha não é exceção. Toda a gente a conhece e ela conhece toda a gente. Existem poucos habitantes, mas muito falatório. Tudo se sabe. O que não se sabe, descobre-se.
A aldeia, sendo pequena, está desenhada da seguinte forma:
Um círculo em que a periferia é preenchida com habitações e campos, e o centro ocupa-se da zona comercial, a praça. Essa onde a velha dos ovos (a que conta tudo à bruxa) tem a sua banca e faz negócio. Também junto à praça há um parque. É aí que jogo à bola com os meus amigos, no parque, juntinho à praça, pertíssimo da banca dos ovos.
No segundo dia da derradeira semana, a velha passou-nos um raspanete porque chutámos a bola e esta embateu na sua banca, partindo uns quantos ovos.
Se a velha tinha razão no raspanete era lá com ela.
Eu e os meus amigos andávamos cansados de ouvir toda a gente (ou só os nossos pais?) a queixar-se dela: que trazia azar à aldeia, que rogava pragas a toda a gente e que o seu gato preto vagueava por todos os quintais da aldeia, a dar cabo das colheitas.
Tínhamos nós agora também motivos para não gostar dela.
Estávamos quatro amigos na ocasião do ralhete por conta da bolada. O quarteto que jogava à bola estava prestes a tornar-se numa quadrilha com um plano de assalto. Mas isso eram assuntos para resolver no dia seguinte, por serem já horas de jantar.
Mais de um ralhete por dia é obra.
Dia três.
Ao terceiro dia, reunimo-nos depois da escola: os quatro da quadrilha e juntou-se um quinto elemento, para formarmos um bando.
Tínhamos de aprontar alguma coisa à velha, dar-lhe uma lição…
Um dos meus amigos disse:
‘O meu pai odeia a velha. Contei-lhe da bola e ele rogou-lhe uma data de pragas.’
Ríamos juntos. Convictos da nossa razão, reforçada pelos nossos pais.
Eu próprio voltei a ouvir queixas da velha lá em casa. Qualquer coisa a ver com ovos estragados.
‘O meu pai’ – falou novamente esse meu amigo– ‘disse que se matássemos o gato à velha, nos dava um rabo de bacalhau.’
Os motivos para cumprirmos o que nos foi pedido eram muitos: o pai do meu amigo, que tanto odiava a velha, estava carregado deles; os meus pais, queixavam-se dela a toda a hora; E nós, um grupo de rapazes a quem a velha decidiu ralhar, não sentíamos qualquer carinho por ela. Além disso, ainda ganharíamos um prémio.
Avaliado o caso, não restavam dúvidas: matar-se-ia o gato.
Dia quatro.
O plano era simples: dois distraíam a velha, comprando ovos. Um terceiro, acompanhando esses dois, enxotava o gato para longe da banca. Os outros dois agarravam o gato, metiam-no numa panela (foi o que se arranjou com tampa, para conter o bicho) e levavam-no dali.
Assim se fez… Resultou.
Dia cinco.
Juntámo-nos na barraca de bricolage do pai do meu amigo (o homem que odeia a velha e nos prometeu o rabo de bacalhau).
O próximo passo do plano era decidir como matar o gato.
‘Olha, já que está na panela, cozinha-se’. – Um de nós disse, depois rimos todos.
Mas…
Olhámos à volta e todos, de alguma maneira, levámos a ideia a sério.
Uma botija de gás com bico de fogão em cima (tralhas da barraca), cozemos o gato.
E depois comemo-lo.
Dia seis.
O meu amigo disse:
‘Esqueçam o rabo de bacalhau! Fui reclamá-lo ao meu pai, e ele gritou comigo, a dizer que não se comem gatos pretos.
“Matá-los é eliminar o mal, mas comê-los é incorporá-lo.”. Palavras dele.’
Ficámos todos preocupados. O gato não tinha qualquer sabor a maldição. Mas sendo o primeiro gato que qualquer um de nós comera, não tínhamos termo de comparação.
Nenhum de nós queria ser dado como morto prematuramente, como a pastorinha. A lembrança de Jacinta, congelada na infância, assombrou-me novamente.
Contei também aos meus pais a situação do gato. A minha mãe ia caindo para o lado. O meu pai riu-se, parecia contente.
‘Não acredites nas parvoíces da maldição’ – disse-me.
Dia sete.
No dia seguinte, a velha morreu.
Se foi por causa do gato ou não, não sei, mas a coincidência assustou-me.
Quando a minha mãe soube que a velha tinha morrido, desatou a chorar. Não porque simpatizasse com ela, mas porque a bruxa lhe dissera que a velha morreria nessa semana…